“Não basta o discurso bonito, é preciso transformar em prática o cuidado com as mulheres”, diz cofundadora do Instituto Maria da Penha
Jornal da Guarujá recebeu em seu estúdio Regina Célia, vice-presidente do Instituto Maria da Penha

A cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Almeida Barbosa, esteve em Orleans, nesta quinta-feira (22), para conduzir a palestra “Direito, Justiça e Cidadania para as Mulheres: Barreiras e o”, no Centro de Vivências do Unibave. O evento reuniu estudantes, professores, lideranças religiosas e membros da comunidade, em um encontro marcado por reflexões profundas sobre o enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil.
Em entrevista ao Jornal da Guarujá na manhã desta sexta-feira, 23, Regina ressaltou a importância do envolvimento coletivo com o tema. “Ontem nós tivemos uma palestra maravilhosa. A presença das pessoas com relação às questões da cidadania e do direito das mulheres foi algo entusiasmante. Fiquei muito contente com o interesse de estudantes, professores e da própria universidade em saber como apoiar e como ajudar a diminuir a violência contra a mulher e promover mais cidadania e direito para todas e todos”, afirmou.
19 anos da Lei Maria da Penha: avanços e resistência cultural
Regina destacou que, apesar da existência da Lei Maria da Penha — que completará 19 anos em agosto —, o Brasil ainda convive com uma cultura que normaliza a violência contra mulheres. “São 19 anos da Lei Maria da Penha enfrentando mais de 500 anos de uma cultura de banalização e naturalização da violência contra a mulher. E essa violência não atinge só a mulher, é uma violência que atinge toda a família. Onde está a violência, existe ausência de amor, ausência de afeto, ausência de cuidado”, afirmou.
Para ela, é necessário humanizar as políticas públicas e as instituições. “Precisamos evoluir no sentido de humanizar nossas técnicas, humanizar nossas compreensões, humanizar as metodologias e trazer mais verdade na prática dos discursos que a gente tanto profere sobre amor, cuidado e família. O discurso de fora para fora é muito bonito, mas quando tem que se materializar para dentro, ele é muito ausente”, completou.
Subnotificação e violência institucional
A ativista alertou para o alto número de casos de violência que não chegam às autoridades, fenômeno conhecido como subnotificação. “Essa subnotificação ocorre no silêncio da mulher em situação de violência. Muitas vezes, ela vai até uma unidade de saúde e ouve do profissional: ‘A senhora aqui de novo, né?’. Isso impede que essa mulher prossiga na busca de ajuda. Além disso, pessoas próximas ainda reforçam frases como ‘ruim com ele, pior sem ele’, ou ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’. Ainda que isso não se fale mais em público, continua sendo reproduzido no ambiente íntimo, no convívio familiar e comunitário”, criticou.
Segundo Regina, o sistema ainda carece de estrutura e profissionais preparados: “Temos mais de 5.500 municípios no Brasil e menos de 500 delegacias especializadas no atendimento à mulher. Os equipamentos estão lá, mas nem sempre os profissionais estão qualificados para que essa mulher prossiga no processo de pedido de ajuda. O poder público precisa se qualificar melhor para isso.”
Ela reforçou que a denúncia é uma decisão da vítima, mas o acolhimento deve ser garantido em qualquer circunstância. “Quem decide se vai denunciar ou não é a mulher. Mas isso não impede que essa mulher seja cercada de cuidados”, pontuou.
Políticas públicas integradas: exemplo de Criciúma
Durante a entrevista, Regina elogiou uma proposta do vereador de Criciúma Obadias Benones (PL), que visa garantir vagas em escolas próximas às novas moradias de mulheres que precisaram deixar seus lares por conta da violência. “Essa mulher morava na comunidade X, sofreu violência, foi para a casa dos pais, mas a escola próxima à nova residência não garante vaga. Então ela é obrigada a levar os filhos para perto do agressor. Essa medida simples já ajuda muito”, comentou.
Ela destacou que iniciativas como essa consolidam o artigo 8º da Lei Maria da Penha, que trata da construção de políticas públicas integradas. “Você está minimizando o impacto da violência na vida dos filhos. Temos hoje jovens com a mesma idade da Lei Maria da Penha, mas que ainda vivem sob o guarda-chuva da violência. Eles não foram beneficiados ainda pela lei no que diz respeito a respeito, cuidado, assistência psicológica.”
Violência e bullying no ambiente escolar
A defensora dos direitos humanos também apontou que, quando a escola não está preparada para lidar com o contexto de violência familiar, pode haver revitimização das crianças. “Se a escola não tem preparo, o que acontece é bullying. E o bullying é você identificar a vulnerabilidade da pessoa e atacar. ‘Sua mãe não tem marido?’, ‘O que foi que a sua mãe fez para o seu pai bater nela?’. Isso ocorre nas escolas, e essas crianças acabam evadindo por se sentirem expostas.”
O papel das igrejas: entre o perdão e a responsabilidade
Questionada sobre a atuação das igrejas no acolhimento às vítimas, Regina foi enfática ao defender que líderes religiosos precisam assumir responsabilidade diante dos casos de violência. “O perdão é individual. O crime precisa ser apurado e investigado. Padres e pastores que ocultam essas situações são cúmplices. A responsabilidade é de todos.”
Ela criticou também a forma como algumas igrejas tratam conflitos familiares. “Algumas fazem jantares, finais de semana em hotéis, encontros de casais com troca de flores e cartas de perdão. Mas trinta dias depois, tudo é rasgado. Quando o time perde, tudo volta. E os líderes sabem, mas se omitem. O templo está sendo defraudado”, disse.
Segundo Regina, é papel das igrejas promover conhecimento desde o namoro: “Vamos falar sobre a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso. O casamento não é só amor, é também responsabilidade.”
Projeto com a Primeira Igreja Batista de Orleans
A vinda de Regina Célia a Orleans foi fruto de uma parceria com a Primeira Igreja Batista, que percebeu o aumento da procura por ajuda por parte de mulheres em situação de violência. “Ainda que orassem, que fizessem vigília, os membros entenderam que precisavam de preparo. Fui convidada e iniciamos um processo de mentoria com a liderança da igreja, homens e mulheres, com encontros a cada 15 dias. Hoje, esse projeto é um case de sucesso que eu levo para outras igrejas e instituições”, relatou.
Além da palestra no Unibave, Regina Célia permanece na cidade para mais atividades. Nesta sexta-feira (23), ela participa de uma reunião com membros da Igreja Batista. No sábado, haverá um encontro voltado às mulheres, e no domingo (25), às 19h, ela falará no culto aberto ao público, também na Igreja Batista, localizada na Praça Central de Orleans.
“Prevenir é melhor do que agir apenas na urgência. A prevenção salva vidas e constrói confiança e credibilidade. E é isso que estamos fazendo aqui em Orleans”, concluiu.
Confira entrevista completa